Transparência - Trechos da Coluna de Arnaldo Bloch- Sábado no O Globo

"Meu pai dias atrás teve uma ereção. Ligou para contar a novidade. Disse que mamãe ficou toda contente. Perguntei: Vocês vão fazer amor? Ele respondeu: Vou estudar o assunto" 


Escutar a conversa dos outros não é um hábito exclusivo dos fofoqueiros ou dos que não têm nada para fazer. Pode ser também uma atividade nobre, fundamental para o exercício de determinadas profissões, e não falo aqui de detetives e espiões, mas daqueles que lidam com o ofício de narrar fatos, fielmente ou através da ficção (jornalistas e escritores), dos que se dedicam a estudos de costumes e dos antropólogos. Às vezes, passar a madrugada num bar exige um ato de despejo mental que só a escrita pode resolver, daí eu reproduzir o diálogo que segue, recolhido ao longo de uma noitada.

— Quando estava para fazer cinquenta anos, tive um choque: de um dia para o outro, não sei bem quando, eu me tornei transparente para as mulheres, numa faixa que vai dos 18 aos 48. Eu não existia. Eu estava ali, mas elas olhavam através de mim.
— E hoje? Hoje você é um ser?
— Mas o peru levanta? De manhã, pelo menos, num impulso automático?
— Levanta, levanta. Mas isso é irrelevante. Tenho lá os meus momentos. O que importa?

— Eu sou um homem relativamente poderoso. Tomo decisões, tenho essa barba, o barrigão, uma certa estatura intelectual, então, de vez em quando, uma jovem se sente atraída, vê um charme, uma aura de califa. Nessas horas, não duvide: eu jamais deixo passar a oportunidade. Recebo como uma oferenda, uma concessão, e agradeço a Deus com grande sinceridade.

— A Deus?

— Creio que sim. Junto as mãos, dou uma olhada oblíqua para o teto, e agradeço de um modo humilde. Não é assim que se agradece a Deus? 

Todo velho, ainda que precocemente velho, merece uma colher de pudim.
Percebi isso quando topei com o senador Nelson Carneiro numa churrascaria, muito velhinho, comendo lentamente um pudim de leite.
Enfim, o fato é que, uma semana depois, abri o jornal e estava ali o obituário do senador. Tive um frio na espinha e pensei: rapaz, aquele deve ter sido o último pudim do Nelson Carneiro.

Registro:


— Eu me sinto transparente desde que tenho, sei lá, uns 3 anos, quando comecei a olhar para o mundo e percebi que o mundo não olhava para mim, por mais que implorasse. 
Ou, se olhava, era para reprovar, condenar, ludibriar, dar porrada.

Hoje, a transparência me traz alento, é um abrigo paradoxal: não é invisível, traduz certo compromisso ético e, ao mesmo tempo, é um escudo protetor contra um universo em marcha acelerada de aporrinhação.


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