Advogada Valéria Santos e a força da mulher negra para mover as estruturas



Por ANF- Agência de Notícias da Favela


Joel Luiz Costa

Publicado em 13 de setembro de 2018

Na semana em que o assassinato de Marielle Franco completa 6 meses, e permanece sem solução, mais uma mulher negra que ocupa um lugar que a sociedade insiste em entender como não sendo seu, sofre com o racismo estrutural e estruturante de um país que insiste em querer viver a falsidade do mito da democracia racial.

A advogada Valéria Lucia dos Santos, 48 anos, foi jogada ao chão e algemada enquanto exercia sua profissão ao participar de uma audiência no fórum de Caxias na última segunda-feira, dia 10/09/2018. Ao que se sabe, a confusão se iniciou após a juíza leiga – um advogado que serve temporariamente de auxiliar do juiz efetivo e concursado – não permitir a Dra. Valéria o acesso a petição de defesa da parte contrária, a advogada recusou-se a sair da sala sem a presença do delegado da OAB (pessoa responsável por resguardar os direitos do advogado no exercício funcional), quando a juíza leiga chamou os policias.

Valéria Santos é uma advogada negra de 48 anos, moradora da baixada fluminense, mãe de dois filhos e ex-jogadora de basquete. Morou por cerca de 10 anos nos EUA após conseguir uma bolsa de estudo, onde conheceu o pai de seus filhos e se casou. Ao separar, retornou com as crianças ao Brasil, no ano de 2005 após sua mãe ser diagnosticada com câncer quando decidiu voltar a estudar e cursa direito, sendo a primeira de sua família a alcançar uma faculdade. A violência estatal e o medo de perder seus filhos para a criminalidade fez com que ela “abrisse mão” deles, permitindo que fossem morar com o pai nos EUA há 7 anos, desde então não os vê.

Retirando a parte de viajar aos EUA e ter filhos americanos, a história de Valéria se confunde com as histórias das mulheres negras no Brasil. O medo de perder o filho, seja para a violência seja para o crime, é contínuo, Valéria se valeu da alternativa de deixá-los viver com o pai. Certamente pensando que a distância dói menos que a perda.

No início do mês de agosto a vereadora Talíria Petrone de Niterói também sofreu com o racismo estrutural e a violência do Estado enquanto panfletava no Centro do Rio. Talira que também é negra, foi detida e levada a delegacia sem cometer ilícito nenhum, apenas por liberalidade e abuso de poder de um oficial da Polícia Militar não satisfeito com o fato de ela panfletar sua campanha a cadeira de deputada federal pelo PSOL.

Talíria, Marielle, Valéria… Três mulheres negras que insistiram (e louvamos a força e insistência) em ocupar um lugar que lhes foi tirado, sofreram com a resposta violenta e racista do Estado e da sociedade. Tenho certeza que se Marielle tivesse sobrevivido não teria abandonado sua caminhada e sua vida pública. Talira e Valéria se mantêm de pé, sabem que não foi a primeira nem será a ultima vez que tentam a força tirá-las do lugar que é seu por direito, o lugar de ocupar cada espaço dessa cidade, cada profissão existente, realizar qualquer desejo que eventualmente possuam sem que tenham que pedir permissão. Tudo lhes é possível.

A mulher negra está na base da pirâmide da estrutura social, possui os menores salários, os empregos mais precarizados, é a maior vítima de violência como feminicídio e estupros, entretanto, ainda assim, se mantém de pé. Resiste. Esses três casos materializam o que já sabemos, quando uma mulher negra ocupa um lugar que no imaginário da branquitude não a pertence, um lugar onde não é desejado sua presença as forças do mal reagem com uma força ainda maior. Mas elas resistem e continuam em movimento. Como dito pela escritora americana e negra Angela Davis “Quando uma mulher negra se movimenta toda e estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras”. A força, coragem e resistência de Valéria movimentou as estruturas do Rio de Janeiro nessa semana, que a gente dê continuidade.


A História de Valéria



"Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta em Criciúma e depois em Concórdia. Morava em uma república de jogadoras, treinava de manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo. Recebia um salário, tudo direitinho. Joguei contra a Paula, a Hortência, várias atletas famosas.

Com 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia, depois mudei para educação física na Universidade Federal Rural. Fui a primeira da família a entrar na faculdade.

Antes de concluir, recebi uma bolsa para estudar e jogar nos Estados Unidos, na Oral Roberts University, em Tulsa, Oklahoma. Morei lá dez anos, casei com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa. Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.

Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi voltar ao Brasil. Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As crianças vieram comigo, conheceram a avó. Retornei para a Baixada e segui com a enfermagem.

Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou. A saúde no Brasil estava muito precária e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade particular, com o Prouni. Mas me angustiava com a situação dos meus filhos.

Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados em Mesquita. Eu olhava para os meus filhos dormindo e pensava: 'Meu Deus…' Eles faziam várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio de mãe. Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: 'E se eu vacilar, não for tão atenta? Com o tráfico e aquela violência toda…'

O Brasil não investe no ser humano, e eles vão ficando pelo meio do caminho. Tem uns que têm uma força muito grande e, mesmo com todas as dificuldades, conseguem quebrar barreiras. Outros não, e são esses que nós perdemos.

Então na época eu liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Não consegui viajar para visitá-los ainda, faz sete anos que não os vejo. Sou advogada autônoma, no começo da carreira, me formei em 2016. Ganho pouco, cerca de R$ 1.500 por mês. Trabalho de casa, em Mesquita, e duas vezes por semana em um escritório de Caxias.

Foi uma decisão radical mandar meus filhos para os EUA, mas foi a melhor opção. Um está começando a faculdade de engenharia, na Carolina do Norte, e o outro está terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá. O mais velho conseguiu uma bolsa de estudos. Então foi doloroso sim, mas valeu a pena.

Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência aqui são os meus tios. Foi com um deles que fui conversar depois do que aconteceu no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem estudo, são muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.

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negra panther


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