Transparência - Trechos da Coluna de Arnaldo Bloch- Sábado no O Globo
"Meu pai dias atrás teve uma ereção. Ligou para contar a novidade. Disse que mamãe ficou toda contente. Perguntei: Vocês vão fazer amor? Ele respondeu: Vou estudar o assunto"
Escutar a conversa dos outros não é um hábito exclusivo dos fofoqueiros ou dos que não têm nada para fazer. Pode ser também uma atividade nobre, fundamental para o exercício de determinadas profissões, e não falo aqui de detetives e espiões, mas daqueles que lidam com o ofício de narrar fatos, fielmente ou através da ficção (jornalistas e escritores), dos que se dedicam a estudos de costumes e dos antropólogos. Às vezes, passar a madrugada num bar exige um ato de despejo mental que só a escrita pode resolver, daí eu reproduzir o diálogo que segue, recolhido ao longo de uma noitada.
— E hoje? Hoje você é um ser?
— Mas o peru levanta? De manhã, pelo menos, num impulso automático?
— Levanta, levanta. Mas isso é irrelevante. Tenho lá os meus momentos. O que importa?
— Eu sou um homem relativamente poderoso. Tomo decisões, tenho essa barba, o barrigão, uma certa estatura intelectual, então, de vez em quando, uma jovem se sente atraída, vê um charme, uma aura de califa. Nessas horas, não duvide: eu jamais deixo passar a oportunidade. Recebo como uma oferenda, uma concessão, e agradeço a Deus com grande sinceridade.
— Creio que sim. Junto as mãos, dou uma olhada oblíqua para o teto, e agradeço de um modo humilde. Não é assim que se agradece a Deus?
Percebi isso quando topei com o senador Nelson Carneiro numa churrascaria, muito velhinho, comendo lentamente um pudim de leite.
Enfim, o fato é que, uma semana depois, abri o jornal e estava ali o obituário do senador. Tive um frio na espinha e pensei: rapaz, aquele deve ter sido o último pudim do Nelson Carneiro.
Registro:
— Eu me sinto transparente desde que tenho, sei lá, uns 3 anos, quando comecei a olhar para o mundo e percebi que o mundo não olhava para mim, por mais que implorasse.
Ou, se olhava, era para reprovar, condenar, ludibriar, dar porrada.
Hoje, a transparência me traz alento, é um abrigo paradoxal: não é invisível, traduz certo compromisso ético e, ao mesmo tempo, é um escudo protetor contra um universo em marcha acelerada de aporrinhação.
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